“Olá meus diabinhos queridos, sou eu, Lenora LaVey, a vossa anfitriã do horror, e estou aqui para vos avisar que alguns espectadores podem achar o programa de hoje perturbador. Vai haver discussão sobre insultos transfóbicos e violência, e exibições gráficas de anime. Ugh! Se isso te for deixar triste, por favor não vejas isto, a menos que aprecies a tristeza. Eu sei que aprecio” diz-nos a figura obscura de uma mulher de aspecto tenebroso, olhos brancos, lábios negros e pestanas exageradas, após acender um cigarro. Na sua cabeça pousa um chapéu enfeitado com o crânio de um touro ao centro, plumas vermelhas e pretas a ladeá-lo e a espécie de um véu de brilhantes nos mesmos tons. Em seu redor paira um ambiente onírico de tons rubros, velas vermelhas e música sombria ao fundo.

É assim que começa o mais recente vídeo de Natalie Wynn no seu canal de Youtube, ContraPoints, com a legenda “uma viagem psico-sexual ao coração de um mau meme” e o título “Are Traps Gay?”. Ao longo dos mais de 40 minutos seguintes, Natalie explora de forma exuberante, com uma abordagem filosófica, cómica, educacional e descomplexada, fazendo humor sobre a sociedade, os homens e ela própria, alguns dos preconceitos que mulheres transexuais como ela enfrentam nos seus quotidianos. Neste vídeo, a autora propõe-se a responder a duas perguntas fundamentais: “o que são Traps?” e “são elas gay?”.
Sob o conceito de “edutainment” (a aglutinação das palavras “education” e “entertainment”), Natalie explora a sua experiência e convicções pessoais com uma abordagem filosófica e sociológica de temas fracturantes da política, da justiça social e de género. Esmiúça conceitos, falácias, frases feitas.
Enquanto “youtuber, ex-filósofa. Sexo, drogas e justiça social”, segundo a sua descrição na página, desenvolve discussões através da interpretação de dez personagens, muitas delas antagónicas entre si, que apresentam vários argumentos sobre os temas que trás a debate.
Isto quer dizer que Natalie Wynn não é uma dogmática e, apesar das tendências de esquerda nas suas convicções, facilmente põe em causa o lado do espectro a que estão associadas com argumentos e factos e através de heterónimos com as suas próprias características e crenças. Além disso, também a produção altamente burlesca dos seus vídeos, sonorizados originalmente pela compositora Zoe Blade são factores que prendem a atenção do seu público.
É com esta liberdade ideológica que conseguiu a atenção de orgãos de comunicação mainstream de relevo como The Verge, The Atlantic, The Economist ou The New Yorker; quase 430 mil seguidores e mais de 20 milhões as visualizações no seu canal, com alguns vídeos a ultrapassar a barreira do milhão de visualizações.
VIMOS ALGUNS DOS SEUS VÍDEOS PARA QUE TU… SAIBAS PORQUE O DEVES FAZER.
Wynn é provocadora. E deitar-se numa banheira com um manequim e uma máscara das figuras mais proeminentes da extrema-direita norte-americana enquanto lhe chama “daddy” e o rega com leite para, no momento seguinte, rasgar em pedaços os preconceitos aos quais aquela figura faz propaganda é um claro exemplo disso mesmo.

Mas é o tom provocatório, decadente e irónico, e a atmosfera cheia de brilhantes, côr e luzes néon, que prende a atenção da audiência para temas como o racismo, o marxismo, as alterações climáticas, os incels, a extrema-direita, o capitalismo, a violência, a esquerda, a disforia de género, o discurso de ódio, entre muitos outros.
Por outro lado, contraria o discurso inflamado e destrutivo de muitos dos preconceitos e ideologias a que se opõe com um ambiente sedutor e abrindo espaço para o diálogo e o confronto de pontos de vista, deitando por terra as falácias que os seus “oponentes” advogam uma por uma, enquanto as satiriza e exagera, no seu estilo muito próprio, dando uso à forte cultura que tem do meio em que se move e da plataforma que utiliza.
Deixamos de fora, propositadamente, o conteúdo de cada um dos vídeos porque não queremos estragar a surpresa. “Aesthetics” talvez seja o melhor ponto de partida para quem quer ter a noção do trabalho de Natalie, mas poderás ver qualquer um dos outros de acordo com os teus interesses ou preferências. Seja pelas técnicas e identidade sólidas na produção dos seus vídeos que dão umas ideias a quem produz conteúdo, o conteúdo reflexivo-intelectual de fácil compreensão, a desmistificação bem-humorada de preconceitos, a vontade de abrir a mente quanto a questões que nos são menos familiares ou a mera curiosidade, ContraPoints é um canal de Youtube a ter em conta.